A ORDEM DO DISCURSO E AS LOUCURAS DO TEMPO PRESENTE


(Foto montagem: Reprodução)
Michel Foucault, um dos mais renomados filósofos do tempo presente, realizou um estudo sobre a hierarquia e os rituais existentes nos discursos. “A Ordem do Discurso” é um livro que procura demonstrar a importância dos discursos considerados: “discurso dos loucos”, bem como daqueles “que não estejam de acordo com uma ordem estabelecida.” (*) Segundo o mesmo autor, “todo discurso possui uma ordem, e ninguém entrará nela se não satisfizer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo.” (*).
Nos piores momentos da ditadura militar no Brasil, a importância de analisar o “discurso do louco” abria espaço para que a democracia fosse discutida. Discurso esse que, naquele período (1964 a 1984), era considerado por quem estava administrando o poder público como o “discurso do louco.” Discurso daquele que estava fora dos padrões e ditames políticos da época, enfim, daquele que não merecia a devida atenção porque era contra o “progresso do país.” Foucault afirma ainda que “O louco é aquele, cujo discurso não pode circular como o dos outros” (*)
Nos dias atuais, é muito comum que os escritores de artigos e trabalhos acadêmicos façam o ritual de seguir uma hierarquia ao escrever. Amparados por seus “mentores” ou teóricos, produzem materiais que também satisfaçam à opinião da grande maioria de um determinado público, principalmente de quem ou de qual regime político está no poder. O empresário comunicador Silvio Santos, do SBT, costuma dizer: “Eu ponho na televisão o que o povo quer ver.” Afinal de contas, se o que foi escrito ou produzido não satisfizer à opinião pública – da maioria, o “ibope” cai, o produto não vende, e a empresa fecha. Ao contrário, quando se escreve algo que se considere que a maioria das pessoas concorda ou quando a idéia difundida é favorável a quem está no poder ou por detrás dele, ela ganha maior credibilidade e propagação, a idéia é vendida e sobrevive. Esse tipo de discurso pode, também, ser chamado de “discurso verdadeiro,” porque ganha credibilidade e é amparado pela tal maioria que sobrevive dele. Basta lembrar-se do quanto uma má ou boa notícia é, repetidas vezes, divulgada e vendida pela mídia. No entanto, quando a idéia foge dos padrões estabelecidos por quem está no poder, acontece o contrário. E assim, nasce “o discurso do louco”, o discurso que, como já foi dito, “não está respeitando a ordem estabelecida.” (*)
Nos anos de chumbo da ditadura militar no Brasil, como já dissemos,“o discurso do louco,” que era pronunciado naquele período, poderia ser considerado como o de quem lutava pela democracia, de quem acreditava que deveria haver um limite nas leis, no poder, na ordem estabelecida; e também daqueles que acreditavam que o poder deveria emanar do povo, na hora da escolha de seus líderes políticos. Louco, por que muitas das vezes o preço a ser pago por aquele discurso era a tortura, o degredo e a até a morte.
Hoje, a situação não é muito diferente. Em meio a tantos discursos democráticos, é possível notar o poder de exclusão e punição existente dentro de cada um deles. Principalmente, no ideal da democracia, onde a vontade da maioria é a Lei. “Pobre minoria”... Ainda mais se tem competência e acesso à educação...Cabe aqui afirmar que a “vontade da maioria,” muitas e muitas vezes, vem carregada de despreparo, de falta de participação e de visão política. É verdade, também, que esse despreparo é causado por uma minoria, que também pode ser corrupta, mas é preciso dizer que colocar os despreparados no poder, por causa de uma minoria corrupta, também não é a solução.
A pior parte dessa história é que, em uma sociedade como a nossa, onde a vontade da maioria é lei e a maioria das pessoas pouco participa da política, os jogos de interesse ficam cada vez mais fáceis para os atores políticos e, quando finalmente os corruptos e os incompetentes assumem o poder público, muitas das vezes já é tarde demais para voltar atrás.
Se “a voz do povo é a voz de Deus” como dizem por aí;...Se a maioria desse eleitorado escolhe sucessivamente os piores homens do povo para governar...E os reelege depois...E se tudo isso é “reflexo de progresso” e se há ainda esperança de melhoria através disso...O louco aqui sou eu!... Talvez, como São João Batista, sou “a voz que clama no deserto...”. Bem dizia o pensador francês Voltaire: “O melhor governo é aquele em que há o menor número de homens inúteis.” Mas aqui no Brasil, parece que esse ideal não pode funcionar. Afastar os incompetentes e os analfabetos funcionais do poder seria, nas palavras de quem se utiliza da administração pública como empresa particular, simplesmente “elitizar o poder.” É muito bom ter pessoas ignorantes, corruptas, com pouco grau de instrução no poder, pois sempre haverá um meio de alguém estar levando vantagem nisso. Fica a pergunta: Democracia ou Ditadura da maioria? No final de tudo, não é a maioria quem decide? Como diz o pensador alemão Johann Wolfgang Von Goethe: “Nada é mais repugnante do que a maioria, pois ela compõe-se de uns poucos antecessores enérgicos; velhacos que se acomodam; de fracos, que se assimilam, e da massa que vai atrás de rastros, sem nem de longe saber o que quer.”
Em sua obra, Foucault critica uma situação que ajuda a exemplificar os fatos supracitados, tomando como exemplo o trabalho de Mendel. Segundo ele: “Muitas vezes se perguntou como os botânicos ou os biólogos do século XIX puderam não ver que o que Mendel dizia era verdade. Acontece que Mendel falava de objetos, empregava métodos, situava-se num horizonte teórico estranho à biologia da época. Ele utilizava novos objetos que pediam novos instrumentos conceituais e novos fundamentos teóricos. Mendel dizia a verdade, mas não estava “no verdadeiro” do discurso biológico da sua época: não era segundo tais regras que se constituíam objetos e conceitos biológicos. Foi preciso toda uma mudança de escala, o desdobramento de todo um novo plano de objetos na biologia, para que Mendel entrasse “no verdadeiro” e suas proposições aparecessem, então, (em boa parte) exatas. Mendel era um “monstro verdadeiro,” o que fazia com que a ciência não pudesse falar nele; enquanto Schleiden, por exemplo, uns trinta anos antes, negando a sexualidade vegetal, mas conforme as regras do discurso biológico, não formulava senão um erro disciplinado” (*)
Quando tomamos o exemplo utilizado por Foucault e o aplicamos na atual política Brasileira, na nossa educação, na história de nosso país ou até mesmo em diversos outros pontos de referência, constatamos a existência dessa “ordem do discurso.” Ordem essa que seleciona o que será dito, por quem e até mesmo quem poderá amparar determinada idéia para que ela “sobreviva no discurso verdadeiro.”
Todas as vezes que falei de democracia, sempre procurei chamar a atenção dos leitores para repensar a sua prática no Brasil. Já cheguei a cogitar a hipótese de que até mesmo a perda dos direitos conquistados, a tão duras penas, poderia auxiliar no processo de amadurecimento de governantes e governados, pois existe um ditado popular que afirma: “só reconhece o verdadeiro valor de uma coisa depois que se perde”. Será que o que eu disse foi um “Discurso de louco”?...Levando em consideração “o entendimento e a participação livre e espontânea” que a grande maioria da população tem sobre a discussão do conceito de democracia e sua prática, cogitar hoje a hipótese de repensar a democracia no Brasil seria simplesmente pronunciar o “discurso do louco.” Afinal de contas, a democracia de hoje, do jeito que ela está, tem-se tornado uma solução econômica formidável. Mudam os atores políticos, mudam os cabides de emprego, mas a estratégia corrupta é sempre a mesma. Competência, quando vem, é em último lugar e olhe lá se vem!
Nesse sentido, percebe-se que o poder público acaba-se tornando “cobaia” de experiências bizarras e assustadoras. Pessoas sem o mínimo grau de instrução política, pedagógica e, até mesmo com minúsculo grau de escolaridade, são eleitas pela MAIORIA DO ELEITORADO ou do grupo político para ocupar cargos públicos e ainda ocorrem eleições sucessivas de pessoas que foram cassadas por corrupção. Além desses fatos, existem muitos outros que dão sustentação a esse tipo de argumento. A pergunta é: Até quando o espaço e o poder público será a “cobaia” desses “empresários do poder?” Enquanto a “teta” dessa democracia que é amparada pela “vontade dessa maioria” existir, ela amamentará muita gente, mas um dia, a mina seca e para onde mesmo que a vaca vai!?...
Na educação, a situação não é diferente. Políticas pedagógicas minam não somente a autoridade dos professores na escola, como também os desestimulam, bitolam, adestram e ainda os colocam como os únicos responsáveis pelo processo educacional dos alunos. Esquecem que a educação não começa na escola, mas sim na casa dos alunos com os seus pais e com muita disciplina. Responsabilidade de educar não é unicamente do professor, mas dos pais, dos pedagogos, das igrejas, da polícia, do estado, da sociedade...A educação é feita em conjunto.
Atualmente, quando o professor deixou de ser o PROFESSOR e passou a ser chamado de EDUCADOR e a escola de EDUCANDÁRIO, os pais, o estado, os pedagogos, as igrejas, a polícia e a sociedade passaram todos a “lavar as mãos” e colocaram a responsabilidade de disciplinar os alunos, criá-los, educá-los, higienizá-los, resolver seus problemas pessoais, familiares e psicológicos... Nas costas do professor. E o louco é aquele que abre a boca para denunciar isso hoje. Quem tem coragem de se manifestar, toma uma “xaropada” de Piaget, Paulo Freire, Augusto Cury, Carter, Perrenot, Vygotsky e muitos outros...e ainda tem de vestir a “camisa de força” do Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso, quando não é torturado ou ridicularizado pelos “enfermeiros” que defendem o sistema...Quem é PROFESSOR sabe exatamente quem são esses “enfermeiros”...E no final de tudo o professor, como sempre, estará errado, desinformado, será o despreparado, o quem não tem criatividade, o incompetente ou até mesmo o “sem pedagogia”...E o salário Hóóóóó!!!!!.....
Enquanto isso ocorre, o Estado, na tentativa de angariar recursos financeiros de projetos e políticas internacionais, segue na sua desesperada e desenfreada busca da queda dos índices de analfabetismo e reprovação escolar. E ainda dizem de peito aberto e com muito orgulho que os números são excelentes!! Com isso, o Estado acaba forçando o sistema a produzir analfabetos funcionais diplomados. Quem define bem esse quadro pedagógico é o jornalista e escritor Nelson Valente: “O Brasil não tem uma Pedagogia. Tem várias, sobrepostas, muitas vezes sem conexão umas com as outras. A história da Pedagogia brasileira é uma espécie de colagem de modelos importados, que resulta em um quadro sem seqüência bem definida.” Será que é Discurso do louco???...
Michel Foucault afirmou, ainda, em seu estudo que “durante muito tempo a voz do louco não era ouvida e se ouvida era ignorada.” (*) No entanto, existiram momentos na História da Humanidade em que as circunstâncias exigiam ouvir “a voz do louco.” E, foi justamente nesses momentos que o homem pôde libertar-se das amarras e dos rituais de quem estava no poder e repensar a realidade vivenciada. Foi nesse instante que o homem teve a capacidade de entender, conhecer e até participar da “loucura do louco.” Foi através desse contato que se percebeu que “o louco” não era tão louco assim. Na verdade, constatou-se que ele era muito mais lúcido que os “normais.” Ele tinha muito a ensinar com a sua “loucura,” pois ele era o único ser livre das regras e rituais de quem estava no poder. Ele era livre dos preconceitos, do poder do estado, do dominador, da imprensa comprada, dos modismos, exclusões, políticas, visões e de todas as “prisões” produzidas pela – “moderna sociedade.” Assim, sua loucura tornou-se a cura dos males do seu tempo. Como historiador, devo afirmar que ainda chegará o dia em que os loucos serão ouvidos novamente e, uma nova ordem, um novo discurso e uma nova sociedade serão construídos, pois cada tempo histórico tem e necessita, da existência do seu louco. Acredito que é preciso repensar ou reconstruir a democracia no Brasil, analisando como é praticada pela maioria do eleitorado no tempo histórico no qual vivemos. É preciso reafirmar que, em outro tempo histórico, “ser louco” era defender a democracia em plena ditadura militar. Repensar a democracia ou reedificá-la pode ser a loucura de hoje? O que estaria em jogo?

Referência Bibliográfica: (*) (FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. São Paulo: Edições Loiola, 1996).

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